quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

O gordo e o magro

 

Eles entram no quarto e se sentam na cama de casal, muito perto um do outro. O gordo é calvo, tem bigode e pelos pretos e grossos nos braços e pernas e está vestindo camiseta preta, shortíssimo vermelho e chinelos pretos; o magro tem fartos cabelos castanhos milimetricamente bagunçados, rosto sem barba, corpo definido e veste camisa branca, jeans com rasgos propositais nos joelhos e tênis brancos. Os olhos de ambos são verdes. Vou procurar a receita do Bolo Verde. Faz quase dez anos que eu não o faço. A mão direita do gordo acaricia o rosto liso do magro enquanto este apalpa a coxa nua do outro. Logo eles se beijam furiosamente. “Bolo Verde. Ingredientes: 1 xícara de óleo, 4 ovos, 1 copo de iogurte natural, 1 gelatina sabor limão, 1 colher de sopa de fermento em pó, 1 pacote de massa pronta para bolo sabor limão. Cobertura: 1 lata de leite condensado, suco de 1 limão. Modo de Preparo. Massa: Bater todos os ingredientes no liquidificador e misturar com a massa para bolo. Assar em forma untada. Cobertura: Misturar os ingredientes e passar no bolo.” (Vovó Palmirinha, “Bolo Verde”.) O magro geme quando o gordo lhe desabotoa a camisa, que é lançada ao chão, expondo o tórax depilado do rapaz. Percebe-se um início de ereção sob o tecido do shortíssimo do gordo enquanto ele descalça os chinelos. O magro o liberta de sua camiseta deixando o peitoral cabeludo do gordo à mostra. Assim que lhe tira os tênis e as meias, o gordo passa alguns momentos chupando os pés do magro. “Fique em casa”, dizem. Mas e quem não tem casa? E quem mora nas favelas? Nos presídios? Quantas pessoas contaminadas hoje? Quantas mortas? O magro deita esparramando seu corpo pela cama conforme o gordo em cima dele desabotoa seu jeans e o arranca – o magro não usa cueca. Nem o gordo, que tem seu shortíssimo tirado pelo magro. Ambos estão nus e com ereções enfáticas. Eu já estava despido desde o início, sentado bem aqui no meu quarto, e agora de pau duro também. Eu costumava fazer o Bolo Verde para festas na minha casa durante madrugadas alegres. Eram os Bailinhos da Saudade. AH, QUE SAUDADE DOS BAILINHOS DA SAUDADE EM CAPS LOCK. O gordo começa um boquete guloso no magro, que não tem pelos nas bolas e que está gemendo e se retorcendo na cama e revirando os olhos. O gordo segue sugando o sexo do magro, cada vez mais ávido. Apesar das mensagens de parabéns para mim, não sinto que hoje seja o meu aniversário. Vou ter que comer o Bolo Verde sozinho. Com vagarosos movimentos, o gordo e o magro engatam um meia-nove, o primeiro continua por cima do segundo, rebolando o cu peludo conforme seu caralho é chupado. O “presidente” quer as nossas mortes há muito tempo. Ele encontrou um expediente para isso na doença. E a doença dança. “Like a vírus - patient hunter/I'm waiting for you, I'm starving for you/Ooo-ooo-ooo-oooh/Ooo-ooo-ooo-oooh//My sweet adversary, ooh/My sweet adversary, oh/My sweet adversary”. (Björk, “Virus”.) Os olhos verdes da morte estão amplos e perigosos à espreita. O gordo é o primeiro a ejacular, arfando e lambuzando o rosto do magro. Em seguida, eu gozo. Um pouco depois é a vez do magro, cuja porra é lambida pelo gordo devagar e sempre. Pequenas mortes. Eu posso vê-los e ouvi-los. Mas não posso nem tocá-los, nem conversar com eles. Só consigo acessá-los através da tela do meu computador.

 

São Paulo, 03/04/2020.